terça-feira, 30 de agosto de 2011

Do Estadão: artigo debate papel da Saúde no combate ao crack





30/8/2011

Crack: solução é acolher e reconstruir vidas
Alexandre Padilha e Roberto Tykanori*


No início dos anos 1980, quando os primeiros casos de HIV foram registrados no País, a comunidade médica e as estruturas de saúde desconheciam a forma mais eficaz de tratar os pacientes, cujo número crescia em progressão geométrica. O dedo foi posto na ferida. Assim, apesar de todos os avanços ainda necessários, demos passos para começar a enfrentar essa epidemia mundial.

Hoje é mais do que evidente que o abuso e a dependência de drogas no Brasil - em especial do álcool e do crack - se transformaram numa nova chaga social. As vítimas acumulam-se, com graves repercussões na ocupação do espaço urbano, na exclusão econômica e social, na rede de saúde e na vida das famílias. Dados de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo evidenciaram a complexidade que é tratar esses pacientes. Durante 12 anos acompanharam 107 dependentes do crack. Após esse período, 32,8% estavam abstinentes, 20,6% haviam morrido (a maioria, pela violência), 10% encontravam-se presos, 16,8% continuavam usando crack e cerca de 20% estavam desaparecidos, num destino incerto para quem esbarra em algum momento da vida com essa realidade.

A dependência, inclusive do crack, reúne situações sociais muito diversas: desde recursos para suportar a exclusão até estratégias para se sentir incluído. Nas estatísticas estão crianças na rua que se iniciaram nas drogas para suportar a fome e o frio, os trabalhadores rurais que acreditam que a pedra lhes pode fazer suportar toneladas a mais de cana-de-açúcar, profissionais liberais pressionados pelo desempenho no trabalho e jovens que querem alcançar, cada vez mais rapidamente, a inserção na turma. Para todos é crucial construir novos projetos e redescobrir sentido para a vida.

As raízes do problema são externas ao campo da saúde pública, mas sabemos que a rede de ambulatórios, de hospitais e de profissionais pode interferir no curso da dependência. Estamos convencidos de que uma abordagem bem-sucedida está relacionada a uma reestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) que possibilite aos Estados, aos municípios, à sociedade civil atuar em conjunto com o Ministério da Saúde, de forma articulada, no enfrentamento do crack e de outras drogas. O SUS, pela sua capilaridade e pelo seu compromisso com a defesa da vida, deve estar mais presente junto aos indivíduos, grupos e no ambiente social onde se inicia ou se perpetua a dependência de drogas.

Para uma ação eficaz é preciso distinguir o que precisa ser distinto: por um lado, reprimir e criminalizar, de forma vigorosa, o tráfico de drogas e o contrabando; por outro, acolher de forma humanizada e possibilitar o acesso dos usuários às diversas terapias, salvando vidas e evitando mortes precoces. Uma resposta da área de saúde poderá prevenir sofrimento pessoal, conflitos familiares, violência e acidentes urbanos.

Somente com a estruturação de uma rede de serviços que ofereça abordagens diferentes para diferentes indivíduos é que será possível aumentar as chances dos dependentes de reconquistarem sua vida e de a sociedade ganhar de volta seus cidadãos. Para ter sucesso o tratamento deve considerar e se adequar a necessidades distintas. Qualquer proposta que se paute em apenas uma forma de ação ou um tipo de serviço está fadada ao fracasso. Ou seja, não pode ser só ambulatorial, nem somente clínicas de internação ou apenas espaços de internação prolongada.

Por isso o Ministério da Saúde propôs uma parceria à sociedade com Estados e municípios para uma nova rede de serviços. Num mesmo território serão ofertados unidades básicas/Programas de Saúde da Família, consultórios volantes para abordagem e cuidado das pessoas em situação de rua, enfermarias especializadas em pacientes dependentes de álcool e drogas, unidades de acolhimento para pessoas que necessitem de internação prolongada, parcerias com entidades do terceiro setor e com comunidades terapêuticas. Além disso, vai capacitar os serviços de urgência e emergência como portas de entrada possíveis. E também ampliar para 24 horas o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas.

O tema é polêmico, mas não nos devemos paralisar diante de dúvidas. Toda iniciativa que se paute pelo respeito aos direitos individuais e pela proteção à vida deve ser defendida, até mesmo com o recurso à internação involuntária, na forma da lei. Mas nem ela - muito menos o uso da força - pode ser o centro da estruturação dos serviços de saúde e da estratégia de saúde. Nesse sentido, saudamos o recente protocolo organizado pelo Conselho Federal de Medicina, que apresenta uma abordagem contemporânea e equilibrada do tema.

A qualificação profissional e o uso de tratamentos bem estruturados são fundamentais, mas uma abordagem multissetorial será decisiva para o sucesso desta empreitada. Nós, profissionais de saúde, precisamos estar cada vez mais preparados para proporcionar os cuidados necessários, porém sabemos que é imprescindível o envolvimento da sociedade e de outras políticas públicas - como educação, qualificação profissional, moradia, esportes e convívio comunitário - para produzir resultados duradouros.

Essa não é uma tarefa nova. Ao longo dos seus 22 anos, o SUS enfrentou vários desafios que também exigiram abordagem multissetorial. E mostrou-se capaz de enfrentá-los quando uniu a capacidade de quem sofre e agregou quem estava disposto a se mobilizar.

Este é o desafio: criar uma grande frente de saúde pública, comprometida com o tratamento, a recuperação e a reinserção dos milhares de crianças, jovens e adultos machucados pelo crack e outras drogas. Estamos prontos para pôr o dedo nessa ferida e começar a cicatrizá-la. Dessa forma estaremos cumprindo nossa missão.

*RESPECTIVAMENTE, MINISTRO DA SAÚDE E COORDENADOR DE SAÚDE MENTAL DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

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